domingo, março 28, 2010

Quaresma


Texto de François-Marie Arouet Voltaire (Dicionário filosófico,1764)

Só nos ocuparemos da quaresma com relação a sua parte civil. Mas é útil e conveniente que exista uma época do ano em que se matem menos bois, menos vacas, menos cordeiros e menos volataria. Ainda não há frangos jovens nem pombos em Fevereiro e Março, quando começa a quaresma. É conveniente que se suspenda em algumas semanas a carnificina nos países onde os pastos não são tão abundantes como na Inglaterra e Holanda.

Os magistrados dispuseram sabiamente que a carne se venda mais cara durante esse tempo em Paris, e o que sobrar seja entregue aos hospitais. Este é um tributo quase insensível que pagam durante curto tempo o luxo e a gastronomia à indigência, porque os ricos não têm força de vontade para guardar a quaresma; os pobres jejuam o ano todo.

Muito poucos lavradores comem carne uma vez ao mês; se comessem todos os dias não haveria suficiente no reino mais abundante. Dez milhões de quilos de carne por dia fariam uma quantidade espantosa em um ano. O reduzido número de ricos, investidores, prelados, magistrados, grandes senhores e grandes damas que se dignam comer frugalmente, jejuam durante seis semanas, saboreando linguados, salmões e outras classes de extraordinários peixes.

Um de nossos mais famosos investidores tinha ajustado por cem escudos diários um correio para que lhe trouxesse pescado fresco a Paris. Esse gasto fazia viver a muita gente, e o que o abonava tinha a satisfação de comer peixes mais saborosos que a carne. Lúculo não teria celebrado a quaresma com maior voluptuosidade. Devemos destacar também que pelo pescado fresco, se paga um imposto considerável quando chega a Paris.

O secretário da despensa do rico, seus criados e criadas, o chefe de cozinha, etc. comem as sobras de Creso, e jejuam tão deliciosamente como ele. Não sucede o mesmo aos pobres. Os que comem cordeiro por pouco dinheiro, cometem um grande pecado; mas procurarão inutilmente esse alimento durante a quaresma. Que comerão, pois? Castanhas, pão de centeio, queijo fabricado com o leite de suas vacas, cabras e ovelhas, e os ovos que põem suas galinhas?

Em algumas igrejas, no entanto, se lhes proíbe que comam durante a quaresma ovos e todo o que tenha leite. Que podem então comer? Nada. Consentem em jejuar, mas não em se deixar morrer de fome, porque lhes é absolutamente necessário viver, ainda que não seja mais que para trabalhar as terras dos frades.

Deve pertencer a autoridade civil, que é a que deve velar pela saúde de seus habitantes, tudo o que faz referência ao ramo de saúde pública. E nisto, não deve imiscuír-se a autoridade religiosa.

Perguntaremos se é justo que pertença ao ramo eclesiástico proibir aos lavradores que comam queijo, que eles mesmos fabricam, e ovos, que lhes põem suas galinhas?

Não encontramos em nenhuma parte que Jesus Cristo proibisse aos apostolos comer omelete; ao invés, no Evangelho de Lucas (10,8) Diz-lhes: “Comei tudo o que vos deem”.

A santa Igreja manda que se observe a quaresma, mas seu mandato só se estende ao coração, e só pode impor penas espirituais. Não se pode condenar hoje à fogueira, como se fazia antigamente, ao pobre homem, que, não tendo mais que toucinho rançoso, lho coma com um pedaço de pão negro ao dia seguinte da terça-feira de Carnaval.

Algumas vezes, em certas províncias, os curas, excedendo-se de seu dever e esquecendo os direitos que competem à autoridade civil, se metem nas pousadas, casas de comidas e restaurantes, para ver se os cozinheiros têm algumas gramas de carne em suas marmitas, alguns frangos assados ou alguns ovos no armário, já que os ovos são proibidos na quaresma. Se encontram algo disto, intimidam aos singelos habitantes do povo, usando com eles até da violência, porque esses infelizes ignoram que os eclesiásticos usam de um direito que não têm, e os sujeitam a uma inquisição odiosa e digna de castigo.

Só os magistrados podem legislar sobre os gêneros mais ou menos abundantes que podem alimentar os habitantes das províncias. O clero tem obrigações mais elevadas. Não pertenceria pois a autoridade civil que incumbiria de ajustar o que o povo pode comer na quaresma? Quem fará a inspeção do que se pode comer num determinado país, se não a polícia médica?



Quaresma II


Os primeiros que tomaram a resolução de fazer jejum se sujeitaram a esse regime por mandato do médico após sofrer más digestões?

A carência de apetite que sentimos quando estamos tristes, foi a primitiva origem dos dias de jejum prescritos pelas religiões tristes?

Os judeus copiaram o costume de jejuar dos egípcios, dos que tomaram uma grande quantidade de ritos e cerimônias, como a flagelação e o bode expiatório.

Por que Jesus jejuou quarenta dias no deserto a onde lhe transportou o diabo, pelo *Knathbull? São Mateus disse que quando saiu da quaresma ele teve fome; então, durante a quaresma não teve fome?

Por que a Igreja romana considera como um crime comer nos dias de abstinência animais terrestres, e como uma boa ação saborear linguados e salmões? O papista ricaço que tenha na sua mesa peixes que lhe custem quinhentos francos será salvo; e o pobre, morto de fome que coma vinte cêntimos de toucinho salgado, será condenado!

Por que se precisa pedir permissão ao bispo para comer ovos? Se um rei ordenasse a seus vassalos que não comessem ovos, não seria considerado como o mais ridículo dos tiranos? Por que essa estranha aversão dos bispos pelos omeletes?

Alguém acredita que entre os papistas tenham existido tribunais tão imbecis, tão covardes e bárbaros, para condenar à morte a infelizes cidadãos que não cometeram mais crime que de ter comido carne durante a quaresma? O fato, no entanto, é verdadeiro, e eu tenho nas mãos um decreto dessa classe. O estranho é que os juízes que se atreveram a ditar semelhantes sentenças se creem mais ilustrados que os Iroqueses.

Padres idiotas e cruéis! A quem mandais guardar jejum pela quaresma? Por acaso será aos ricos? Eles se guardam bem da observar. Será então aos pobres? Para eles todo o ano é jejum e quaresma. Os infelizes lavradores quase nunca provam a carne e não têm dinheiro para comprar pescado. Doidos é o que sois! Quando ireis a emendar vossas leis tão absurdas?

* A palavra "Knathbull", foi tirada de “O mundo encantado” (De Betoverde Weereld, Amsterdam, 1691) do holandês Balthasar Bekker que criticou os nomes fantasiosos dados ao diabo, e até negou sua existência.

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